United States of Piauí:
Não se deix’enganar, você, animal sudestino, urbano, pelo visual “simples” de Luiz Gonzaga.
Algumas canções dele encerram lições milenares de harmonia.
Ess’aí em cima, por exemplo, faz um cruzamento entre modalismo do blues e modalismo nordestino (conforme a própria letra da canção). Um épico do quixotesco, medieval mas século XX, da formiga vs. elefante! Que oportunidade! Que sacanagem musical bem feita! O ouvido ainda acusa que há similaridades de afinação entre sons tradicionais do nordeste e o blues, via série harmônica. É uma larguíssima ponte sonora intercontinental que o Gonzaga ouviu e mostrou aí com um’elegância despretensiosa, com a sutileza de um bilhetinho sonoro…!
Além desse “enxerto” musical, a canção acima é rara porque texto e música fazem a mesma coisa, têm o mesmo significado. Na imensa maioria das canções populares (pra não dizer “em quase todas”), isso não acontece, música e texto são apenas sobrepostos (na melhor das hipóteses, com algum grau de expressividade, às vezes nem isso), a música no máximo acompanha um certo afeto do texto (“tristinha”, “alegre”), ou dá algum suporte a ele, ou não tem nada a ver mesmo. Aqui, não: ela faz o mesmo que ele. Isso põe essa invenção do Gonzaga junto com os madrigalismos do Gesualdo de “Beltà poi che t’assenti”. Que momento feliz! Eu celebro…
Outras canções: em “Morte do Vaqueiro”, Gonzaga casa modalismos, tonalismos, cromatismos; e em “Fogo Pagou”, está ali uma herança moura inegável, a rasgação harmônica frígia e paralela, que desembocou no flamenco, na Espanha, etc. Não são os maiores hits do velho, mas, do que eu conheço, são suas maiores aulas de música…