MÚSICA “INFANTIL”: Disco, Funk, BRock, Pop, Punk e outros palavrões imaginários ou concretos
O senso comum (este eterno professor) vai usar a palavra “infantil” com 2 sentidos:
1. “Infantil” como julgamento negativo, querendo dizer “imaturo” (pra sua respectiva idade);
2. “Infantil” como ocorrido na infância, independentemente de qualquer juízo de valor estético, moral etc.
O primeiro sentido (de uma música “infantil”, no mau sentido) nos interessa menos por enquanto – e será adiado pra última etapa dessa prosa.
O segundo sentido se apresenta mais interessante: a música que se ouvia na infância, naquele tempo… .. .
Neste ponto, nos deparamos já também com uma segunda ramificação:
1. a música que é “infantil” porque feita especificamente para crianças (e que, supostamente para ser absorvida pela e/ou agradar a criança, teria necessariamente que ser folclórica, ou tonal, ou modal, ou pentatônica, ou doce/suave, ou feita por crianças, ou feita por um programa de TV/canal de internet infantil etc.),
2. a música que é “infantil” porque foi a que se escutou na infância, independentemente do caráter/estética de seu conteúdo e de seu fim original.
Pois bem. Neste caso também, o primeiro sentido se revela menos instigante.
Vamos nos ater ao segundo sentido, então, isto é, o da música “infantil” por ser a que se ouvia na infância, independentemente de seu conteúdo, gênero, estética.
(escuta [internamente] essa música…)
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Embora haja gêneros musicais especializados na infância (a canção de ninar talvez sendo dos mais óbvios), a ideia de que a criança pode experimentar livremente o repertório tido como “adulto” parece bem mais promissora, pelo menos na medida em que subestimar a priori o cérebro infantil não é atuar no melhor interesse da criança.
E pior do que a ideia de que deva haver um repertório só para crianças (e necessariamente um que provoque irritabilidade nos respectivos responsáveis) é a ideia de que a criança só possa ouvir algo deste repertório e nada mais – que não possa escutar, por ex., algo do mundo musical “adulto”.
Esta ideia, que talvez seja bem comum hoje, de forma nenhuma era uma “verdade” há 4 décadas atrás, por exemplo.
Havia já muita “música infantil”, no sentido de “feita para crianças”, nos anos 1970-80, óbvio (como não lembrar dos discos “Saltimbancos” [1977], “Arca de Noé” [1980] e “Plunct Plact Zum” [1983]?). Mas, de forma alguma, nós, as crianças, éramos obrigadas a ter nossos ouvidos circunscritos a esse repertório.
Nunca ouvi (quando criança) a ideia de que só podia ouvir música “de criança” – e nem meus coleguinhas de escola ou da vizinhança praticavam essa restrição. A música “infantil”, para além desta música especializada, era a música que a gente ouvia “enquanto crianças”. Qualquer música. Então, quem definia o que era “música infantil” era a própria criança, ou seja, quem ouvia. Quem define é quem ouve.
Então….. em relação a este assunto, parece mais interessante perguntar:
¿Qual foi a TUA “música infantil”?
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Só pra ilustrar, minha primeira lembrança de música, de “musicologia”, de se discutir música, foi aos 2 anos (certeza absoluta, porque a casa onde essa discussão ocorreu foi na Tijuca, antes da mudança, antes dos 3), quando me gabei com a minha mãe por ter escutado uma música “com palavrão”.
A música em questão era “Toda menina baiana” (1979) do Gilberto Gil. Não era música “infantil” especializada. E não tinha palavrão algum, por isso minha mãe não entendeu minha insistência naquele “achado”, naquela zombaria. Pr’aqueles ouvidos infantis, o verso “Que Deus deu” (repetido com tremenda ênfase na canção) era um palavrão. E eu o apontava com insistência, enquanto a canção rolava no rádio: “escut’ali, olh’ali: AGORA!”.
Mas….. eu ‘tava é “ouvindo coisa”…! Porque o ouvido também é imaginação.
Escuta (tu também) esse “palavrão” imaginário:
Minha segunda lembrança, já aos 3, era de dançar compulsivamente ao som da música de pista do final dos anos 70, que no Brasil populou também o início dos anos 80. Eram os embalos de sábado à noite da gringolândia, que formataram os ouvidos da Geração Coca-Cola no Brasil. “Música” era sinônimo de dançar. E aquilo não era música feita “pra criança”. O ápice disso foi sem dúvida o Michael Jackson (principalmente a partir de 1982). Na escola, meus amiguinhos com 5 anos de idade se recusavam a ouvir folclore brasileiro do séc. XIX, eles vinham com o disco do Michael Jackson debaixo do braço e queriam colocar na vitrola da escola durante toda a aula de música. E dançar. “Aula de música” queria ser sinônimo disso. E aquele era o nosso folclore. O lucro podia ser da indústria cultural, da gravadora, de quem fosse, mas a música era nossa. Muito nossa! Como uma Coca-Cola pela qual se paga um real e se bebe inteira, uma Coca-Cola imediata e totalmente inteligível. Uma Coca-Cola que parece brotar de você mesmo! Em vez de uma Coca-Cola que alguém tem que explicar longamente antes de você gostar. Uma Coca-Cola que requer diploma de doutorado antes de ser bebida… .. .
Não há como recontar esse fenômeno sem ser superlativo. Parecia que todas as crianças do mundo queriam não só dançar como, mas SER eternamente Michael Jackson, tamanha foi a força da indústria musical, ou do neocolonialismo, ou de alguma conexão de tipo universal contida nesta entidade dançante/cantante chamada Michael Jackson – ou de tudo isso misturado. Até hoje, aquele Michael Jackson, jovem e poderoso, encerra um poder misterioso pr’essa geração…
Depois, ao longo dos anos 80, nós, aquelas crianças, consumimos rock brasileiro. Na época, os pais nos presenteavam com os discos disso. Mas não era música “pra criança”, tanto que não fazíamos ideia do que as letras significavam de fato (no mundo “adulto”), apenas as repetíamos à exaustão e as sentíamos e interpretávamos à nossa própria maneira.
Quando, por exemplo, em 1986, crianças de 9 anos punham na vitrola o disco (LP) “Viva”, do grupo baiano “Camisa de Vênus”, não faziam muito ideia do que fosse “camisa de vênus”, pra que servia, que era capaz de evitar nossa própria existência. A lista interminável de palavrões (de fato!, não imaginários) fixados neste disco parecia de uma crueza gratuita e inédita (mesmo se comparada a uma pelada de playground), mas, mesmo uma criança já detectava um frisson estético naquilo: no momento pós-ditadura, era a primeira vez que ouvíamos tanto palavrão em qualquer mídia (rádio, TV, disco). Leio aqui, inclusive, na internet, que de fato esse foi dos primeiros discos no Brasil a fazê-lo. Parecia uma atitude “de vanguarda”. Punk! E dessa vez não foi só imaginação de ouvido infantil… .. .
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P.s.(1):
Em nossa tribo musical, a puberdade e adolescência, para aqueles de nós que foram mordidos pelo mosquito da música, pros que já estudavam música, vieram como um rechaço gradual a toda a música que ouvíramos na infância, em favor das novas obsessões musicais: o jazz, a música instrumental, os clássicos da MPB das décadas anteriores, as músicas “étnicas” (de “outras culturas”) e a música “erudita” moderna e contemporânea.
E a música escutada na infância tinha de repente se tornado “infantil” demais (no mau sentido).
Entretanto, hoje, muito depois da negação da infância que é típica da adolescência, sinto que uma ambição estética possível (e interessante e lúdica) seria fazer uma música transparente, absolutamente inteligível, que fosse entendida até pelas crianças – mas sem que isso fosse alcançado através de se subestimar a inteligência infantil… .. .
(isto é, falando mais amplamente: uma atitude “Pop” mas sem aderir a uma subestimação da inteligência alheia…)
(uma música usufruível simultaneamente pela criança, pelo velho e pelo especialista……………..: ¿será possível?)
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P.s.(2):
A música “Pop”, da indústria cultural, é frequente e automaticamente classificada como “infantil” (no mau sentido, no sentido de imatura ou simplória). E isso frequentemente é um dado verificável e demonstrável relativamente, quando ela é comparada às músicas instrumentais e a várias tradições.
Mas, por um lado, no sentido de que quem ouve é quem decide e no sentido de que a beleza está nos ouvidos de quem vê, seria possível ver qualidade aí, em algum Pop – e recontar sua História a partir de criadores e obras. No caso do Brasil recente, eu incluiria a Marina (Lima) e o Lulu Santos dos anos 80 e o Ed Motta como exemplos de inevitáveis protagonistas disso. Eu os compararia aos grandes criadores de outros gêneros – e isto sem qualquer sombra de paternalismo ou bajulação da minha parte: foram/são imensos no que fizeram/fazem, dentro de seus respectivos nichos.
E, por outro lado, pareceria interessante recontar a História do Pop de um ponto de vista mais musical, sem tanta ênfase na roupa, na atitude e no marquetingue (que são os inevitáveis focos de outras áreas de estudo que se debruçaram mais frequentemente sobre o Pop do que nós músicos)… .. .