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O GRANDE IMITA O PEQUENO (?): duas Físicas vs. autossimilaridade em Composição Musical: Bach, Ben, os espectralistas e Gesualdo

 

Ouço no rádio da manhã, pela voz de cientistas renomados, que houve essa divisão na Física da 1a metade do séc. XX: entre a Física das coisas grandes e a das coisas pequenas (eles chamam de “Teoria Geral da Relatividade” vs. “Teoria Quântica”). Uma serve pro trânsito dos corpos celestiais por ex., e a outra pros elétrons no interior dos átomos. Sem querer entrar em muitos detalhes (para além do meu know-how), no estágio atual da coisa (porque essa divisão continua até hoje), a lógica para corpos “Grandes” é bem diferente da lógica dos “pequenos”. São, por assim dizer, duas Físicas, dois sistemas. E muitos cientistas estão até hoje tentando unir. Fazer de duas Teorias uma coisa só. Que seria, com enorme poesia na ciência, uma Teoria “de Tudo”, eles dizem.

Bom. Como somos inevitavelmente animais da Música, e tudo em nós converge pra ela, esta (quase-)centenária divisão da Física, se nós a usássemos como óculos temporários, nos remeteria a uma grande e velha questão da Composição Musical:

o Grande imita o pequeno? Ou a lógica deles difere?

 

“pequeno” pra nós poderia ser um sonzinho, ou os detalhes internos a um som, enquanto que o “Grande” pode ser uma sequência de coisas musicais: de acordes (Harmonia, progressão harmônica) ou de notas (Melodia), ou mesmo toda uma seção de uma música qualquer, ou uma música inteira, ou até uma obra inteira, a obra inteira de Chiquinha Gonzaga, por exemplo.

O interessante na Música é que respostas diferentes podem coexistir, pode-se experimentar esteticamente tanto a afirmação quanto a negação de uma proposta. Uma “verdade” única, suprema e inquebrantável não é necessariamente o valor máximo em Música. Tudo tem o potencial de ocorrer no território do jogo, do lúdico e da especulação (sonora, mas também parassonora) infinita.

Daí que os músicos e as obras de várias épocas e lugares responde(ra)m diferentemente a essa pergunta de se “o Grande imita o pequeno” (ou vice-versa)…

Nós músicos temos o hábito de chamar, numa adaptação livre de um termo da Matemática (porque a Música é muito velha e se coloca de maneira altiva, com uma certa autoridade em relação a suas parceiras também antigas), [chamamos] de “autossimilaridade” quando o Grande imita o pequeno (ou vice-versa) num objeto musical qualquer analisado.

A (pré-)História da autossimilaridade em Música é looonga – por vezes, tangenciando outras definições/termos (como “organicidade” ou “Harmonia das esferas”…), mas a palavra nunca importa tanto quanto o seu significado e o impacto que isso tem de fato na construção musical. É pra esse significado e impacto que se quer aqui apontar. Vê…

Entre as coisas que são autossimilares em Música, podemos citar o fato de que em boa parte da música tonal (grosseiramente, entre os sécs. XVII e XIX, com ramificações até hoje) a relação “pequena”, acorde-a-acorde, de I – V – I (lê-se: “um – cinco – um” ou “Tônica-Dominante-Tônica”) também se expressa na forma “Grande”, quando a música se inicia no I, modula pro V a uma certa altura da obra e retorna ao I pra terminar. Você vai achar isso em incontáveis obras, por exemplo, nas Invenções a 2 vozes de J. S. Bach (1685-1750).

Mas, as autossimilaridades em Bach vão muito além do sistema musical que ele herda. Em 1722, por exemplo, a harmonia modula ao longo desse prelúdio abaixo exatamente pros tons das primeiras notas da melodia. Ou seja, o pequeno se projeta no Grande, o presente (ou passado) da obra determina seu futuro.

Escuta:

A coisa da autossimilaridade é tão abrangente em Música que mesmo pulando séculos e gêneros vamos achá-la. Será ela um instinto musical?

Olha isso. No Jorge Ben (1942 – ) de “Olha o menino” (1967), por exemplo, os acordes do acompanhamento ao longo da música são justamente as 3 notas principais do início da melodia (embora não na mesma ordem e não ao mesmo tempo, o que confere riqueza à coisa [um matemático diria: “permutação”…]).

Escuta (com Caetano Veloso, não achei uma versão com o Ben):

 

***

Voltando pra música dita “erudita”, os chamados “Espectralistas”, dos anos 70 do séc. XX, pretendiam fazer música que projetasse na grande forma musical os detalhezinhos que acontecem no interior do som (revelados por análise de sonograma [hoj’em dia facilmente realizável via computador pessoal], e/ou imaginados e (re)inventados [imaginar os átomos do som, em permanente movimento e transformação… .. .]).

Escuta esse exemplo de 1975 (“Partiels” de G. Grisey [1946-1998]), em que o que se ouve após o ataque inicial do trombone é em grande medida determinado pelo conteúdo analisado do próprio som do trombone (na época, foi uma ideia do caralho realmente, e hoj’em dia se tornou uma ferramenta-pensamento à disposição de qualquer estudante-músico):

Mas, como disse lá atrás, nem tudo é necessariamente autossimilar em invenção musical…

Em um compositor como Gesualdo (1566-1613), por exemplo, a lógica interna a cada acorde (triádica, “consonante”) é diametralmente oposta à lógica utilizada pras sequências de acordes (cromática, “dissonante”). Um belo exemplo de como o Grande não necessariamente imita o pequeno, em Música.

Escuta esse exemplo (de 1611):

Dada a diversidade de respostas da Música, podemos seguir, então, morando nessa(s) pergunta(s):

Hoje você vai criar música com a mesma lógica em várias dimensões?, ou com lógicas diferentes pra cada dimensão?!?

O Grande vai imitar o pequeno?

Os céus e seus astros gigantes vão imitar a lógica interna aos átomos?

(…)

 

2 observações:

(a) não importa muito, aqui nesse contexto, se o compositor pensou ou não nessas autossimilaridades ao construí-las, pois elas estão lá, estão presentes na música; seria perfeitamente possível (e interessante) fazer uma análise do percurso de um cérebro ao fazer uma certa atividade; aqui, entretanto, nos interessa primeiramente, e menos ambiciosamente, o que está presente no resultado final, na música;

(b) se você não ouviu essas relações, relaxa!, você está bem acompanhado, mesmo pr’um músico profissional elas não aparecem sem prestar muit’atenção – mas, atenção: o fato de que você não as ouça não significa que elas não estejam lá (e sejam determinantes na construção daquela música), assim como o coração é fundamental pr’uma pessoa que você encontra, mesmo que ele esteja escondido atrás da pele, carne e ossos, e você não o veja, e assim como o tijolinho é fundamental pro castelão, embora ele esteja escondido atrás de muita tinta…

(…)

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