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SEU JORGE MARIA (MARIA) GADÚ WEBERN: funções mântrica e narrativa da harmonia (e 2 formas completamente diferentes de se fazer limonada do limão em Música)

 

Seu Jorge (n. 1970) é um cara “cool”. Ou pelo menos assim reza o senso comum. E o senso comum é um precioso sujeito e objeto de estudo.

Escuta:

 

“Harmonia” em Música pode ser definida aqui pra gente como os acordes (cifras, posições) que você toca no violão – o acompanhamento. De modo que há pelo menos duas entidades rolando em boa parte da música popular (e da clássica): 1. o que você canta (a melodia) e 2. o acompanhamento que vai por baixo, como pano de fundo, mas que também pode ser sentido e descrito como envolvendo tudo (a harmonia).

A harmonia (as cifras de violão) nessa canção do Seu Jorge é (são) mais ou menos assim:

Am7  F7M  E7/4

Apenas 3 acordes!, que se repetem a esmo, à vontade (ad libitum) ou ao infinito (ad infinitum). É como se fossem aqueles motivos de papel de parede ou de ladrilho de banheiro ou aquele fundo de desenho animado antigo, que têm 2 ou 3 figuras e em seguida só se repetem, repetem, repetem. A representação literal por escrito disso poderia ser assim:

Am7 F7M E7/4  Am7 F7M E7/4  Am7 F7M E7/4  Am7 F7M E7/4

Am7 F7M E7/4  Am7 F7M E7/4  Am7 F7M E7/4  Am7 F7M E7/4

Am7 F7M E7/4  Am7 F7M E7/4  Am7 F7M E7/4  Am7 F7M E7/4

Am7 F7M E7/4  Am7 F7M E7/4  Am7 F7M E7/4  Am7 F7M E7/4

Am7 F7M E7/4  Am7 F7M E7/4  Am7 F7M E7/4  Am7 F7M E7/4

Am7 F7M E7/4  Am7 F7M E7/4  Am7 F7M E7/4  Am7 F7M E7/4… .. .

Ou (ou um pouco mais bestamente) assim:

(Am7  F7M  E7/4)n

[Donde “n” seria o número de vezes que a coisa se repete…]

 

Essa canção me lembrou uma outra, da Maria Maria Gadú (n. 1986), que meu ouvido lembrou no mesmo tom, também só com 3 acordes – e muito “cool” também.

Escuta:

Essa dá pra resolver mais ou menos com esses 3 acordes:

Am7 Dm7 E7(b13)

Que se repetem até a eternidade também, vê:

Am7 Dm7 E7(b13)  Am7 Dm7 E7(b13)  Am7 Dm7 E7(b13)  

Am7 Dm7 E7(b13)  Am7 Dm7 E7(b13)  Am7 Dm7 E7(b13)  

Am7 Dm7 E7(b13)  Am7 Dm7 E7(b13)  Am7 Dm7 E7(b13)  

Am7 Dm7 E7(b13)  Am7 Dm7 E7(b13)  Am7 Dm7 E7(b13)  

Am7 Dm7 E7(b13)  Am7 Dm7 E7(b13)  Am7 Dm7 E7(b13)… .. .

Há vários nomes usados pra indicar esse e outros tipos de repetição no acompanhamento em Música: passacaglia, ostinato, loop… há quem diga até que essa repetição (de acompanhamento, ao fundo) favorece a dançabilidade de uma canção, favorece o transe, a hipnose, o rito, o culto, a reza, a transcendência – mas também a reprodutibilidade, a apreensão, a familiaridade e a comerciabilidade, o famoso “Compre BATON, seu filho merece BATON”…

Olha aí.

O caráter uniforme e padronizado das harmonias acima lembra inevitavelmente a produção em massa, a indústria e o comércio, o mundo da propaganda e marquetingue, e a Arte Pop…

Mas, o que mais nos importa aqui é apenas o fato de que repete, de que uma pequena célula se repete: a repetição, o loop, o ciclo, o círculo, a mandala, a reza, o Mantra!

Daí que a gente pode chamar esse fenômeno musical, produzido por uma harmonia curta (com poucos acordes) repetida a esmo, de: função mântrica da harmonia. (Sempre lembrando que nos importa mais o sentido do que as palavras usadas…)

Esta função mântrica da harmonia está presente em boa parte da música de dança, da música folclórica, da música comercial (Rock, Pop…). Lembro, por exemplo, dos acordes I-VI-II-V repetidos em tantos partidos-altos ou samba-reggaes e na 1a seção do “Beleza Pura” do Caetano Veloso…

E o Jorge Ben é um virtuoso nessa prática no contexto da música brasileira. Boa parte da música dele dá pra tocar com repetições de apenas 2 ou 3 acordes (“Xica da Silva”, “Eu vou torcer”), 3 ou 4 acordes (“Olha o Menino”, “Bebete vambora”, “Take it easy my brother Charles”, “Charles Anjo 45”…).

Existe uma destreza que é a de se comunicar com pouco, uma habilidade da concisão, da síntese. É o caso nos exemplos acima.

(…)

 

Em contraste a esta harmonia com poucos acordes, também existem harmonias com bem mais acordes (12, 20, 35…), encadeados como se fossem palavras num texto mais longo, como que formando uma narrativa, uma historinha. Nesse caso, como os acordes só se repetem em trechos musicais bem mais longos, o cérebro-ouvido não os percebe imediatamente como um ciclo, um mantra, mas como um percurso, uma narrativa. Por isso, a gente poder chamar esse caso de função narrativa da harmonia.

Essa função narrativa da harmonia está muito presente na música erudita tradicional (Bach, Haydn, Mozart, Beethoven, Wagner etc.) e nas músicas populares de harmonia mais elaborada: a Bossa Nova, algum jazz, alguma canção (mais elaborada) do Lulu Santos até…

Escuta esse exemplo do Webern (1883-1945), de 1927-28. A harmonia não mantra… ela faz um percurso, conta uma história. Como alguém que foge de si mesmo, e que ao fugir de si mesmo acaba produzindo um percurso, uma narrativa, uma historinha, vai de A pra B, em vez de voltar a si mesmo em círculos… .. .

(…)

Então…

Os 3 músicos aqui listados fazem uso econômico de materiais da Música.

Mas, eles propõem 2 formas completamente distintas de se criar com o pouco em Música. Enquanto que Gadú e Seu Jorge produzem a partir do pouco um mundo de fundo muito cíclico, dançante, ao colocarem um material bem limitado pra repetir, girar e gerar transe, Webern tenta extrair e gerar o máximo de diversidade a partir do mínimo de material.

2 formas diferentes de se tirar limonada do limão, leite de pedra.

(…)

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