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CÁSSIA ELLER “GÊNÉE”: gêneros e genealogias musicais

 

Extremamente atormentado por “notícias frescas deste disco”, a palavra francesa Gêné (algo em torno de “incomodado”, se não me falha a memória) me acordou cedo hoje.

Não falo francês há uns 25 anos, mas a língua insiste em brotar de alguma quina do meu cérebro vez ou outra, com’um pesadelo, e é preciso interpretar criativamente esses sinais teimosos, além de que me ocorreu ontem d’eu assistir ao acaso a uma entrevista da Simone de Beauvoir, essa pessoa maravilhosamente firme que há décadas já nos ensinava o segredo de um casamento virtuoso.

Bom. Tomando a palavra apenas por seu som, sem os acentos insanos do francês e tornando-a partícula (GENE-), entendi que duas palavras daí geradas (Gênero e Genealogia) me permitiriam falar de Cássia Eller, como gancho pra coisas recentes de Música. Não é uma questão de tradução ou etimologia, hein, mas de transformação e derivação sonoras (uma técnica musical) aplicadas às palavras. O desprezo à música, aliás, frequentemente advém disso: a Música coloca o som acima de tudo, se permite dedicar-se ao não-verbal e a irracionalidades. É revoltante, pra alguns.

Bem…

Primeiro, vem me chamando atenção a duplicidade do termo “Gênero” em Música: 1. como gênero musical e 2. como gênero (sexo social definido).

1. Na parte que toca o gênero musical (samba, funk, rap etc.), creio que é possível vislumbrar gêneros mais estreitos, únicos e pessoais – em vez de construções coletivas. Alguns prefeririam a palavra “estilo” para a coisa mais pessoal, embora o uso de “gênero” seja mais plástico, provocativo e dúbio (sendo que dubiedade é interessante em criatividade e, portanto, em música). Haveria o “gênero Cássia Eller”, por ex., então. E eu creio que o há. Firmemente.

2. Na parte que se refere a “gênero” como algo em torno de sexo social definido, noto que cada vez mais os debates sobre música se tornaram debates sobre gênero (neste segundo sentido) e em vez de resistir à intromissão da Vida em Música (um’atitude bêsta…rs), preferiria reconhecer desde já o Gênero como parâmetro sonoro, composicional. Deixa eu explicar isso, pra você entender como é uma ideia talvez meio maluca mas bem interessante: defender que o Gênero seja um parâmetro sonoro/musical significa que ele é um parâmetro para a criação de músicas, a ser criativamente manipulado em Música, e até mesmo independente do fato de ele ser algo importante, e a respeito do qual não se para de falar, em Vida.

Eu quero dar uns exemplos concretos.

Os músicos, esses criadores que desconhecem limites, manipularam e manipulam as ideias sociais acerca de “gênero” pra produzir expressão musical. São uns sacanas. É como quando Caetano Veloso canta “Esse Cara”, o efeito sonoro sendo o de um cantor-autor homem que fala na pessoa de uma mulher que ama submissamente (algo que num plano Moral, suponho, beira a cafajestagem). Esse efeito é o grande responsável pelo delírio da audiência. Há uma versão em que Caetano canta olhando para Chico Buarque, adicionando mais um nível de ambiguidade e dúvida: quem canta seria um homem-mulher, uma mulhômem?!? É a invenção musical manipulando a expectativa de gênero.

Virginia Wolf (é assim que s’escreve?) defendia que a androginia tinha um papel na criatividade artística. E parece inegável que a dubiedade de gênero tem sido usada até na construção de mitos do universo Pop: David Bowie, Michael Jackson, Xuxa (?)… Dizem que a dubiedade de gênero vende.

Como se o mito Pop fosse uma escultura antiga sem traços tão definidos, pra ser possível de ser enca’xada em qualquer sonho, o público completando os traços de acordo com seus desejos. Uma folha em branco para projeções. Etc.

Acontece a mesma coisa quando Cássia Eller pega a música de um homem falando que vai pegar mulher (“Gatas Extraordinárias”, do mesmo Caetano Veloso). Independente de se você interpreta a letra como uma mulher representando um homem ou como uma mulher lésbica, ela ganha uma outra expressão, renovada e provocativa. Ela virou a autora da música. E é manipulação de gênero como parâmetro de criação musical.

Escuta.

A letra de “Meu mundo ficaria completo” (originalmente de Nando Reis) é quase neutra em relação a gênero, exceto por umas duas ocorrências da palavra “Ela”, de modo que nesse caso o parâmetro “Gênero” fica menos pronunciado e expressivo.

Compara.

Já o relato de um’artista ultrajovem como TRIZ é acachapante. Aqui, o parâmetro “Gênero” se torna o parâmetro determinante na invenção musical. Tudo dá suporte e gira em torno disso. A música está completamente a seu serviço…

Vê.

 

A música é também uma ferramenta de compa’xão. Quero dizer, é possível se comover com o relato do músico, mesmo que seja uma história completamente diversa da sua. Há um substrato expressivo/emocional/musical comum. Substrato comum. Acho que no Hinduísmo se chama “Brahman” e talvez no budismo se chame “Vacuidade”, mas em musiquês provavelmente se chama “Música” mesmo. Porque Música é um canal que pertence a todos. Isto é uma força dela – embora, em outro sentido, seja também uma fraqueza…

Em relação a Genealogias e de volta a Cássia Eller, ela parece ser herde’ra de várias linhagens importantes da música do séc. XX: o uso da violência como matéria-prima interpretativa (Rock, Hendrix), a disseminação do ruído como catalisador da expressão musical (guitarra elétrica, os vários gêneros de Metal, o Noise) e a linhagem dos músicos-estivadores, aqueles que carregam enormes pedras sonoras e as entregam diretamente aos seus ouvidos (T. Monk certamente, J. Hendrix um pouco, embora fosse frequentemente mais delicado, as colossais baterias de escola de samba, a “Dança das Adolescentes” de Stravinsky e os tocadores daquele instrumento indiano que faz sangrar os dedos). Impossível não lembrar do complexo de Atlas, mas, que céus são esses que os músicos foram condenados a carregar nos ombros…?

Enfim. Agora reparei que Cássia Eller canta com um timbre e atitude muito específicos. Ela parece sempre um pouco “gênée” (incomodada). Deve ser por isso que a palavra me surgiu teimosa à mente… .. .

(…)

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