“BEBETE VÃOBORA”: o apóstrofo oculto como amor explícito entre palavras em Jorge Ben
JORGE BEN É CONHECIDO POR DRIBLAR aspectos da “norma culta” da língua em suas letras, em nome da obtenção de um maior swing na prosódia musical (ou seja, no ritmo com que as palavras são cantadas), ou mesmo contribuindo pr’uma certa estética sonora desejada pr’alguma palavra em particular.
OU SEJA: COMPOR COM O SOM DAS PALAVRAS. Fenômeno lindo de se ouvir.
“APÓSTROFO”, só pra lembrar, É ESSA PERNINHA VOADORA ( ‘ ) que usamos para unir ou cortar sons de palavras.
E O APÓSTROFO É O MAIOR REPRESENTANTE DA VONTADE da escrita verbal de se aproximar dos sons da língua falada. Porque, veja bem, a norma culta tem lá sua Moral, quer manter as palavras separadas, quietinhas, estáveis, mas na língua falada elas tendem à união. É o amor entre fonemas. Entre sons. Ou seja: Música.
NA CRÍTICA (E/OU ANÁLISE) MUSICAL DE CANÇÕES, é vital analisar o som das palavras, porque a canção é sobretudo uma forma de composição musical em que a palavra é a matéria-prima. O texto, portanto, é nesses casos o parâmetro sonoro/musical fundamental. E a palavra é encarada também como Música.
Escuta.
Então, o título dessa canção “BEBETE VÃOBORA” é um tratado sobre um apóstrofo oculto, cujo esconder revela muito sobre os amores entre gentes e palavras.
Mas… por quê?!?
Veja. Na norma culta escreve-se assim: VAMOS EMBORA (!!!)
Mas, na vida quotidiana, só se fala assim à beira do estresse e do desespero, quando s’está apressando algum nativo do signo de Aquário por ex. (pra partir pr’um compromisso com hora muito marcada).
Então, Jorge Ben diz e escreve “VÃOBORA”, sem apóstrofo.
REALMENTE, DO PONTO DE VISTA DO SOM, diz-se tanto “VÃOBORA” quanto “VAMBORA”, a prime’ra forma sendo um tantinho mais carregada de estresse, o que faz sentido na letra.
Por outro lado, do ponto de vista gramatical (e a Música não teme as gramáticas), “VAMBORA” faz mais sentido, pois quando se chama alguém estamos no domínio da 2a pessoa da singularidade – NÓS! – que usa “vamos” e, portanto, “vambora”.
Em seguida, se quisermos usar o apóstrofo, pra demonstrar um apreço tanto pela língua falada quanto pela escrita, tanto pelo dialeto quanto pela norma culta, tanto pelos novos quanto pelos velhos e mortos, então, vai ficar assim:
VAM’BORA
Ou assim:
VA’MBORA
Aqui acima, então, fica visível o apóstrofo oculto que o título da canção escondeu…
Como a letra comum entre as duas palavras “vamos” e “embora” é o M, ficamos indecisos quanto a colocar o apóstrofo antes ou depois dessa letra comum. Daí as 2 formas possíveis listadas acima.
ESSA INDECISÃO NÃO OCORRE quando o apóstrofo é aplicado entre uma consoante e uma vogal (com a vogal sendo o pivô, a letra comum entre ambas as palavras envolvidas), entre duas vogais diferentes que se tornam uma, ou entre duas vogais iguais. Veja os lindos exemplos retirados da letra de “BEBETE…” logo abaixo:
…COM’É QU’EU POSSO COMPRAR, ESTANDO A PERIGOS (sic)…
…POIS JÁ’STÁ NA HORA…
O apóstrofo também serve pra cortar sons numa palavra só, no começo ou fim dela. Veja:
…E O NOSSO NENÉM ‘TÁ CHORANDO… (em vez de “está”)
E até pra cortar sons no meio da palavra (embora nessa canção isso não ocorra). Veja alguns dos exemplos mais lindos do carioquês, que corta sistematicamente ditongos cansados de guerra:
DINHE’RO em vez de DINHEIRO
VERDADE’RO em vez de VERDADEIRO
MANE’RO em vez de MANEIRO
Etc.
É ASSIM QUE percebemos que o cuidado composicional do Jorge Ben chega até a (re)composição em nível silábico, fonético, tanto nos exemplos acima quanto quando ele insiste em dizer por ex. “VOXÊ” em vez de “VOCÊ” (na canção “Por causa de você, menina”).
Ou seja, ele é também um compositor no nível dos sons das palavras, compositor de fonemas.
(…)
QUANTO AO SENTIDO DO TEXTO, O PROTAGONISTA DESSA CANÇÃO NOS DEIXA ENTREVER QUE ELE ESTÁ UM POUCO ENROLADO, pois sua Mulher é uma máquina de samba, mas eles precisam dormir porque logo mais ele precisa trabalhar e o neném mamar. A letra desenha uma Mandala, Roda da Vida, círculo vicioso, já que ele trabalha também pra dar novas sandálias pra Mulher sambar, e assim a história voltará do começo: a Mulher voltará a sambar e ele suplicará pra que se recolham, preparando o novo dia. Da Capo. Loop.
ATRAVÉS DE SEU SUADO TRABALHO, nosso protagonista colocará, com novas sandálias, o samba e os pés da Mulher no altar do sublime. Por isso, um crítico uma vez propôs que essa letra seria feminista, ou pelo menos muito pró-Mulher. Não sabemos. Há controvérsias e, portanto, haverá treta.
O QUE SABEMOS É QUE O AMOR E SEUS MITOS E FATOS, românticos ou carnais, serviram no mínimo como eterno combustível da canção. MAS, a totalidade das canções ainda não descreveu nem de perto a totalidade dos amores. E a língua escrita ainda não concretizou a totalidade dos amores possíveis entre as palavras através de seus apóstrofos.
E é por isso, meus amigos e amigas, que a História da Canção está longe de chegar a seu fim… .. .
***
P.s.:
Só a título de parêntese hermético e conclusivo, no plano do musiquês nosso de cada dia, repare que em “BEBETE…” Jorge usa AS MESMAS NOTAS na(s fundamentais da) harmonia e na melodia do refrão como um todo, em vez de a troca harmonia-melodia ser apenas dentro de cada acorde (como é comum em boa parte da música ocidental). Ou seja, ele faz o que se chama em música contemporânea de “autossimilaridade”: o pequeno copia o grande, um copia o outro, a melodia copia a harmonia (como um todo) etc. E isto é muito raro em música popular! Ben fantástico. Como sempre.
(…)