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MARISA MONTE FRANZ SCHUBERT: invasores e fugitivos dos lares musicais, crítica musical do enxerto, musicologia da fofoca e do crime, perdão aos mortos e Performance Musical como Composição

“ENXERTO”, a internet me conta, se refere mais ou menos à união de 2 plantas, geralmente de espécies diferentes, de forma assexuada, formando uma nova planta de 2 partes. Enxerto musical pode ser uma música análoga, feita de 2 músicas anteriores que foram aglutinadas numa nova. Crítica musical de enxerto pode ser, então, a união (às vezes Frankestáinica) de 2 críticas diferentes.

Então, vamo’ lá. E salve-se quem puder…

 

NO TEMPO E NO PLANO HARMÔNICO, Marisa Monte (1967) e Schubert (1797-1828) estão muuuuito distantes entre si. Serão as duas partes deste enxerto mal-ajambrado.

MARISA segue a concepção harmonicamente quase-estática do Groove. Riquíssima do ponto de vista rítmico e tímbrico, mas relegando a Harmonia a um papel secundário (acho que ouvi apenas uns 5 acordes nessa canção do link a seguir, muito bem colocados aliás, de forma a salientar o final de cada estrofe e o refrão da canção; inclusive um acorde de 6a aumentada, bem comum no Blues, mas bem mais antigo também, já estava até lá na “Fantasia Cromática” do Bach [ca. 1717-1723]).

JÁ SCHUBERT é herdeiro da Harmonia como fator principal de produção de Forma em Música. Ele pega o que herdou dos clássicos (Mozart, Haydn…) e leva a Harmonia a lugares mais distantes, despudoradamente – morreu aos 31 anos apenas, de sífilis, parece. Em Schubert, a Harmonia faz a música andar, ao mesmo tempo que é pra ela o pano-de-fundo, além de colorir as palavras (menor pras estrofes tristes, Maior pra esperança da terra natal, agitação pros tremeliques das brisas e das marolas presentes na lêtra etc.).

ENTRETANTO, O TEXTO DE DUAS CANÇÕES DELES, ESTRANHAMENTE E POR UM RACIOCÍNIO TORTO, OS UNE, em referência a um “Lar”: um personagem invasor que é mandado de volta pra seu lar (no caso de Marisa), ou um fugitivo sem lar, que vaga, errático, vagabundo, nômade, pária, completamente desgraçado (no caso de Schubert).

Nesta canção (de 1991), Marisa, através da voz dos personagens da canção, expulsa o invasor, o colono, o catequizador, o missionário, o grileiro, o perpetrador da “ordem”, o capitão. Ela o faz não na base da porrada, mas montada num argumento moral: nós somos melhores que você!, porque não “choramos, sorrimos, ou seguimos à toa”. É um texto moral, cristão também (ainda que contra a catequização do invasor), parente do “mito do bom selvagem”, porque defende que o invadido é sempre melhor (moralmente) que o invasor, e portanto politicamente correto.

Escuta.

 

NÃO IMPORTA QUE a música não tenha sido escrita por ela, Marisa, pois é possível defender que quem cria a obra é o intérprete, aquele que a estreia/toca, já que em francês se diz “créer” para estrear uma obra, que pode ser erroneamente traduzido como “criar” em português e, embora o francês não tenha nada a ver com isso, uma tradução errada baseada em língua estrange’ra é sempre boa estratégia pra fazer valer seu ponto. De modo que o faremos. Finge que a letra é da própria Marisa. Pois ela a “criou”.

ALIÁS, O SENSO-COMUM DEFENDE QUE O MELHOR INTÉRPRETE ROUBA a obra daquele que a criou. É assim com Elis Regina, com Thelonious Monk, com Rosa Passos em “Águas de março”… e o “Por enquanto” de Cássia Eller é muito, muito!, melhor do que o original da Legião Urbana, é como se ela tivesse (re)parido a música. Bizarro. Invenção. E uma amostra da potência da Performance quando esta não se reprime em ficar bem próxima à Composição.

SE MARISA MANDA O INVASOR DE VOLTA PRO SEU LAR, Schubert canta o fugitivo sem lar, aquele para quem se tornou impossível voltar para um lar, pois não há mais lar. São percursos opostos, mas sempre em relação a um “Lar”. Um lar musical, por exemplo.

Escuta.
(obs.: também não falo alemão; tradução pro inglês aqui: https://goo.gl/VsnDBW)

 

DE FORMA ANÁLOGA, UM MÚSICO PODE ESCOLHER como trajetória o voltar para seu lar musical (talvez expulso de outras paragens), ou abandoná-lo completamente, seguir vagando, sem lar, pelo infinito sonoro, tentando achar um lar no estrange’ro musical, ou nem isso, nunca… .. .

O FUGITIVO DE SCHUBERT É UM ARQUÉTIPO ROMÂNTICO E ESTÁ BEM É FERRADO, ele não tem pátria e se tem se sente estrange’ro nela, sua cidade natal sofreu uma hecatombe natural, econômica e eleitoral, é tratado como um herege pela própria família, que sente horror e tapa os ouvidos e narinas quando ele ousa uma aproximação, e até sua mãe torce o nariz ao ouvir seu nome! Os amigos o abandonaram, não chamam pr’um chopp ou pra fumar um bagulho, se ele fuma não traga, se traga não sente o gosto ou efeito, ou até desmaia! Perambula maltrapilho, foi traído sem nem ter amado, e se amou nunca foi correspondido! Se chora, as lágrimas não caem pois está desidratado, se viaja não encontra hospedagem em parte alguma, que dirá um lar!, se trabalha duro a sorte não o encontra, e se tem sorte esta só o encontra quando ele não está trabalhando. O chamam de “otário”. Pois ele é o protagonista daquele “Poema em linha reta” de Fernando Pessoa.

SUA SITUAÇÃO É DE AMARGAR mesmo. É um desafortunado. Ele penará e vagará. Eternamente… .. .

(…)

NADA POR QUE EU OU VOCÊ TENHAMOS PASSADO, mas através da Música é possível imaginar, tipo, sentir a dor que Fernando Pessoa e Schubert não sentem, com tanto pesar que ela se torna quase nossa, quase vivida, vívida… .. .

Chamemos isso, por ora, de “Performance (Musical)”.

(…)

P.s.(1): Essas duas músicas combinam bem, quando ouvidas ao mesmo tempo, em vez de uma depois da outra. Tipo um enxerto sonoro. Um casamento sonoro arranjado, cheio de vertigem lírica, com’um navio que afunda, com a humanidade dentro… Tenta!

P.s.(2): Dizem as más línguas (quer dizer: alguma musicologia histórica) que Schubert era pedófilo. Nosso instinto musical se apressará em considerar que para se ouvir música (ou ler um livro) do passado será preciso separar os hômi das obra’. Jogar fora a água suja sem jogar o bebê. Senão, não vai sobrar (quase) nada. Nem a filosofia nem a mitologia da Grécia antiga. Nem os escritores hômi tudo. Nem mesmo a Bíblia. Então, você pode ficar com a música, e os crimes ficarão para o deleite da musicologia criminal e os neozeladores da moral passada, com seus tribunais de linchamento retroativo Facebookiano.

Dando um passo àtrás (sic), porém, podemos ficar somente na pergunta: se o autor cometeu um crime, sua música deve ser riscada do mapa? A música de um autor criminoso é também criminosa? Pode uma partitura ou uma gravação cometer um crime? No caso de um autor criminoso morto, é possível esquecer seus crimes no ato da escuta, mesmo que apenas por esse momento? Há perdão para os mortos? Há entendimento de que nossa moral atual não fazia sentido há 100, 200, 500, ou 2.000 anos?

E isso está longe de afetar apenas a recepção de Schubert, hein!? Obras de Gesualdo, Wagner, Noel Rosa, Geraldo Pereira (e fora da música: Platão, Sade, Polanski, Woody Allen…) e de tantos outros já foram ou serão riscadas do mapa em função dos atos (supostos ou reais) ou dos pensamentos de seus autores.

Decidam(-se), então.
E depois me passem as instruções… .. .

(…)

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