# 32

BADEN POWELL: uma pequena História da parcialidade em crítica musical e da Música como amor aos mortos

 

Baden Powell. A única certeza quando se vai escrever sobre alguém assim é que se está penetrando em território arriscado.

Porque é difícil falar do que é próximo. Não há possibilidade de isenção. A parcialidade é total. Você nem quer ser neutro. Não.

FALA-SE DO AMOR A ALGUÉM, casamentos de meio século, mas o amor a um som pode ser incondicional, e sem nem casamento. E olha que o som às vezes não te dá nada, não retribui, não faz juras de amor, apenas ocorre, ali.

ADMITO AQUI, então, a total parcialidade do que vou escrever a seguir, explicitada através de uma micro-história da minha parcialidade em relação ao Baden e seu violão, como se fosse uma autodelação (mas sem prêmio).

ME É DIFICÍLIMO falar ou escrever sobre Baden porque foi o primeiro músico cujo disco (LP, na época) eu pus na vitrola pra imitar ao violão. Com uns 9 anos de idade. Foi meu primeiro grande professor (sem nem saber, ele não tem culpa…rs). É música infantil, pra mim (no melhor dos sentidos). É como se fosse minha “comfort music”.

E mesmo depois, aos 17 anos, que eu abandonei completamente o violão (em favor do piano), minha audição seguiu parcial em relação a Baden.

E mesmo 20 anos depois, quando comprei um violão chinês por 50 dinhe’ros, mas só me permitindo fazer serenatas vagabundas e olhe lá (violãozinho, hein?, estudar nunca mais, Baden nunca mais), nada mudou nessa escuta.

BADEN POWELL É COMO SE FOSSE O MEU BEETHOVEN, uma grande sombra que nos paralisa em sua trilha trilhada. Eu nunca compus uma nota sequer pra violão. Nem vou. Seria um sacrilégio. É como se esta região da escuta estivesse reservada apenas para Baden e seu violão. É um medo e um mito. Mas é um mito que eu sigo com calada e entusiasmada resignação.

E Baden foi o único dos “grandes intérpretes” que eu (ou)vi ao vivo até a puberdade. É que os outros “grandes” morreram antes d’eu ver.

Então, Música pode ser esse eterno amor aos mortos…

VEJA: Elis Regina, Thelonious Monk e Glenn Gould parecem ter morrido todos em 1982 (acabei de checar na internet: é isso mesmo; que grande solavanco na História da música, hein!, nesse ano a dimensão do tempo deve ter mudado seu curso e a história da humanidade deve ter se sentido passando num incômodo quebra-molas…), [sim: em 1982] quando eu era muito criança e sem que eu pudesse tê-los assistido.

Foi o mesmo ano em que Michael Jackson lançou aquele álbum mais vendido da História dos vivos e dos mortos (também chequei online, não duvide…) – e todas as crianças do mundo queriam ser Michael Jackson. Eu também. A gente ficou obcecado com tentar dançar de marcha a ré. Lembro. Talvez tenha sido o primeiro fenômeno global em tempo-real. Incrível.

O QUE BADEN FAZ, em resumo, é tocar uma bateria de escola de samba nas cordas do violão. É isso. É esse o fenômeno. É esse o diferencial. São dedos-passistas articulando com a calma de quem fuma um cigarro a nomeação do samba como aristocrata rítmico e tímbrico. É bizarro. Mas é.

E EMBORA PIXINGUINHA TENHA FALADO MAL do samba em favor do chôro, Baden põe o samba no altar máximo, restitui ao samba esse lugar especial, essa utopia, pondo em dúvida com uma retórica musical acachapante e apoteótica a sentença do velho Pixinga…

SE EU FOSSE DAS CIÊNCIAS HUMANAS, diria, de pileque ou orgiástico, que ele faz democracia sonora.

(…)

E EMBORA REZE A LENDA QUE O BRASIL É O PAÍS DO VIOLÃO, eu nunca mais ouvi este som do Baden, este SWING!, em outras mãos. Raphael Rabello (monstro!) não fazia. Yamandu (rapidíssimo) não faz. Marco Pereira: finíssimo. João Gilberto: Lorde. Todos ótimos. Cada um, um sim. Mas… não.

ENTÃO, BADEN DIZ “DEIXA”. Que eu interpreto como a sabedoria do desapêgo. Não é deixar apenas um algo, mas deixar tudo: corpo, identidades, pertencimento, obsessões. Não é reprimir, impedir, derrotar-se ou sentir-se derrotado, é apenas deixar. E esse ato é o berço de uma arte coletiva, em vez de apenas do Ego.

(O violão deixa. Deixem o violão… .. .)

Então, escutem, ouçam e entendam, amig@s do hemisfério sul:

 

A EXASPERAÇÃO INACREDITÁVEL NA PARTE CENTRAL DESSA FAIXA – a parte do “improviso” que certamente não é um improviso, mas algo preparado e belissimamente preparado – é a coisa mais bela que esta Terra já (ou)viu e há de comer. É a sílaba -xa da palavra “Deixa”, trazendo uma grande cachoeira de derramamento de água lírica via arranhamento de cordas. Um esculacho sonoro.

E EMBORA OS CRÍTICOS DIGAM que Baden não era tão bom improvisador, que importa como a música é feita?, se previamente ou na-hora?, isso é o de menos!, o que importa é o resultado!, e esse resultado aí, minha gente, é monstruoso!!!, uma grande e acachapante obra-de-arte derramando-se pelos tímpanos com’o mais glorioso suco de manga, limão e caldo de cana feito-na-hora. Um desbunde.

COM BADEN, DANÇAM OS VIVOS E OS MORTOS. E choram todas as catástrofes humanas dançando em marcha a ré até o surgimento da primeira estrêla. Dançam e choram com raiva e lágrimas nos olhos. Mulheres! Pois é uma dança viril e feminina.

Mesmo que o violão já existisse nas Arábias e Espanhas do mundo, pessoal, esse ser aí (re)pariu o violão.

Big. Bang.

Sem. Mais.

(…)

VOLTAR