# 31

“FEELING GOOD”: o sentir(-se) bem de Nina Simone

“FEELING GOOD”, como geral sabe, significa algo em torno de “se sentindo bem”. Mas, se a tradução errar um pouco (no sentido de que toda tradução é traição), você fica com “sentindo bem”, que oferece um significado mais musicalmente revelador, acho.

“SENTINDO BEM”, pra nós aqui, pode ser: sentindo muito, com muita intensidade, megassensivelmente, o paroxismo da hiperestesia, essas coisas…

E “FEELING” (SOZINHO), em musiquês, significa algo em torno de “expressividade”, “visceralidade”, na mitologia musical seria o aspecto da música que vem de dentro, do sentimento, da irracionalidade, do Dionisíaco, da animalidade, do instinto, e não de uma educação, uma “técnica”.

Embora saibamos que muito disso é “mito”, pois a “técnica” pode ser suporte do “feeling” (tudo entre aspas), em vez de seu oposto, os mitos também contam. Porque uma mentira repetida vai que já é uma quase-verdade. Ou, dito de outra forma, uma “verdade” pode-se estabelecer por mera repetição. (Pelo menos em Música…) Ou, dito ainda de outra forma, se o músico acredita num certo “mito”, então este mito tem impacto sobre sua música.

E Nina Simone tanto “sente bem” quanto tem “feeling”. O som é a prova. Escuta isso aí:

 

EM “FEELING”, O FONEMA /f/ É CORTANTE!, com os dentes frontais superiores rasgando o lábio inferior. E o som de /g/ em “good” é mais interno, na parte de trás da língua, fechand’o buraco, mas mais lentamente que um som de /k/. Há então um relaxamento no plano das consoantes iniciais das duas palavras. E este relaxamento é espelhado no plano das vogais centrais. Veja: em “feeling”, o fonema /i/ (resultado do duplo E em inglês) é de espectro mais agudo que o /u/ de “good” (resultado do duplo O). Nina enfatiza tudo isso, estressando ainda mais a palavra “feeling” (sentindo[-se]) e relaxando o “good” (bem), no verso que encerra cada estrofe e dá o título. Por cima disso, a melodia também faz um arco descendente da primeira palavra pra segunda, que relaxa. Tipo de detalhe que cria mais expressão e nos sequestra… Viva a Nina!

(…)

UM TEMA POUCO FALADO sobre intérpretes é o quanto uma exacerbação da sensibilidade (às vezes até fruto de uma alegada “desordem” emocional mais generalizada) pode jogar a favor da interpretação e performance viscerais, mesmo que algumas verdades ditas na cara sejam muito mais difíceis de ouvir em vida do que em música – e acabem atrapalhando aquele mínimo de política necessária para o sobreviver medíocre e, por conseguinte, a vida prática, a subsistência do músico.

A ARTE MUSICAL, COM SEU SONHADO STATUS DE LIBERDADE “TOTAL”, talvez não requeira nem uma (fixação) Política qualquer (do ponto de vista de sua concepção, sua criatividade). Embora muita produção musical só se concretize na base de muita política corrique’ra, circunstancial, mesquinha. Paradoxos…

É COMOVENTE PERCEBER como tantos artistas se debateram com isso. Isto é, com uma situação em que vida, corpo, o entorno e afins se puseram contra a produção de uma arte, em vez de lhe servir de suporte.

QUER VOCÊ SE ENGAJE OU NÃO, politicamente e de forma direta, através da tua música, fica muito claro que as agendas não são necessariamente iguais, ou seja, uma música com as “melhores” intenções políticas (seja lá o que isso fôr) não é necessariamente a tua “melhor” música. Há uma separação potencial entre o mundo do som e o da palavra (sendo que sobre a palavra se apóia, por ex., a Política).

De todo modo, quer a qualidade da tua música sofra ou não com um engajamento assim, parece clara a fragilidade da Música frente à Política, em geral.

Basta olhar pra alguma História: a música de Beethoven (por ex.) foi em momentos diferentes celebrada como humanista, mas também foi usada pela propaganda nazista, ou pra vender qualquer coisa em comercial de TV. Quem ouvia, acreditou em coisas até diametralmente opostas (a mesma música poderia ser tanto nazista quanto humanista?). Talvez porque o discurso sobre música, o discurso que acompanha a música, tenha uma influência determinante ou até destruidora em sua audição. Maior que o som até.

VAI QUE É PORQUE A PALAVRA MANDA! Então, a música (sobretudo a instrumental) é facilmente suplantada pela palavra e pelo Poder (político). Embora em um outro universo, íntimo?, individual?, (est)a fragilidade da Música e do som possa ser força. Um pequeno brilho escondido. Segredo.

ME PERMITA DIZER (e isto é apenas uma opinião desimportante, de alguém desimportante, e a crítica musical se faz confortavelmente quando sabemos que estamos falando de Titãs que não serão afetados por nossa mera opinião) [“me permita dizer”, eu dizia…] que as canções mais explicitamente engajadas de Nina Simone (e “Feeling good” não seria dessas) não são seu ponto alto. Pois, nessas, ela se traz demais pra Terra. Tolhe sua fantasia. Quando na verdade ela é um pássaro que voa muito alto: “Birds flying high / You know how I feel…” é o 1o verso de “Feeling Good”… .. . E depois até o Sol: “Sun in the sky / You know how I feel…”.

Se bem que há um quê de engajamento explícito nessa canção, quando ela diz: “Oh, freedom is mine! And I know how I feel…”. Ou seja: estou errado…

MAS, a internet me diz que esta mesma canção foi usada num comercial da Volkswagen em 1994 (não achei online) e até dos Vigilantes do Peso. Ou seja, talvez ela não seja tão necessária e explicitamente engajada assim. Talvez o que eu disse ali em cima não esteja tão errado, então…

SÓ QUE o original de onde a canção foi retirada é megaengajado, explicitamente político…

Arrêgo. Perdi.

(…)

MESMO PERDENDO, e sem tirar o mérito da atuação política dela, que é evidente, ainda me parece possível comparar músicas musicalmente, e sem engajamento político, sem uma agenda a priori (que fatalmente distorce a análise em favor de uma narrativa política pré-fabricada e “necessária”), usando como critério alguma qualidade musical (e o crivo não é sem subjetividades, óbvio: eu digo o que me é possível dizer, você diz o seu, e assim por diante: na soma das perspectivas, a gente ergue um castelão, ou Castelões…).

PARA UMA ANÁLISE MUSICAL MAIS COMPROMETIDA COM NARRATIVAS DAS CIÊNCIAS HUMANAS, ou com bande’ras, é um gozo (e/ou uma conveniência) quando estas encontram reflexo direto em alguma produção musical. Mas isto subjuga a valoração musical necessariamente a alguma moral, alguma bande’ra, alguma ciência, o que a meu ver é um prejuízo,

já que a música como um todo pode ser moral ou não, científica ou não, da bande’ra ou do indivíduo, e assim por diante.

A UTOPIA DESTA ANÁLISE sem uma adesão firme a uma ciência humana qualquer pode ser tentar chegar ao que “é” musicalmente, mesmo que isso seja difícil e/ou não satisfaça alguma moral, ciência ou bande’ra selecionada. Critérios musicais. Foco nas musicalidades. Mesmo que ser musical implique uma decepção pra outras análises da vida. A Música é apenas um filtro, um par de óculos – e há algum valor em se saber simples –, existem outros filtros, outros óculos. Cada um que se sirva à vontade.

[ Apesar de que noss@s amig@s budistas nos ensinam que nada “é” “em si”, mas apenas em relação a outras coisas, as outras coisas o definem. “Princípio da interdependência”, talvez se chame isso. E os estudos culturais sigam de modo análogo. Criando depois outro tipo de problema, que é a ideia de que a música é totalmente determinada por outros fatores, que ela pode ser totalmente determinada, descrita, em termos de ciências humanas, sociologicamente, antropologicamente, economicamente, etnicamente, como se 2 gêmeos criados da mesma forma e no mesmo lugar fizessem necessariamente a mesma música. Mesmo tendo perdido no argumento, eu sigo cético quanto a isso. Desconfio que existam questões meramente musicais. ]

Mas, é: é tanta coisa pra gente saber… .. .

(…)

A ÚNICA COISA QUE EU SEI, ou talvez a única coisa que eu sinta (bem), é que essa Introdução aí, com a Nina cantando solo, absolutamente sozinha, a voz dela!, é acachapantemente melhor do que o resto do arranjo. A gente ouve o som de alguém que (se) superou, (se) filtrou, (se) sentindo bem, sentindo muito. Mesmo que a palavra “melhor” esteja censurada em crítica ou análise musical, a gente a usa. Porque essa Nina aí é muito.

“Bird flying high” (ela), enquanto que depois tudo desce no arranjo: a banda desce, o baixo desce, a harmonia, a letra. Parece uma grande e lerda e enclichesada murrinha em loop o que vem depois. Alguém que se arrasta, pesado, na vida.

Céu (antes) contra Terra (depois). E, no caso, um Céu que é muito “melhor” que a Terra… .. .

(…)

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