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“WATER BABIES”: os bebês aquáticos de Miles Davis

Esta obra-prima de Miles Davis (no link abaixo) eu a ouvi pela primeira vez a partir de um CD coletânea, cor “rosa-pele” (como chama minha filha), desses que as Lojas Americanas vendiam por uns trocados, promoção, pra disseminar a mídia CD, quando ainda era nova, na longínqua era pré-internet. Devia ser 1989 ou 90, por aí. Tinha que pagar pra ouvir música naquela época, fio!

A internet (agora) diz que foi lançado originalmente em 1976, a partir de gravações de 1967-68… escut’aí:

Na época, eu não reparei no título (“Water Babies”) e o que eu (ou)vi foi outra imagem: a de uma imensa roda gigante sonora!

Três coisas sustentam essa audição/visão, presumo:

1) o prato de condução da bateria levando as subdivisões de um jeito trôpego, débil, onírico, rubatado, assimétrico, metálico, como se estivéssemos sendo levados por uma geringonça lúdica, rodante em meio a nossos próprios sonhos infantis…

2) o compasso múltiplo de 3; o ternário e seus derivados trazem uma incompletude, que se traduz em jogar pra frente, movimento mesmo, roda; essa coisa jogar-pra-frente é potencializada pelo acompanhamento do piano que fica um tempão (lá no solo do trompete por ex.) só no 2o tempo (de 6): UM – plaaaaa… UM – plêêêêê… UM – pliiiiiii… UM – plôôôô…

3) a própria estrutura da melodia; na 1a seção, abrindo com 2 notas repetidas 3 vezes, sugerindo um ciclo, um vai-e-vem, e depois expandindo seus limites, como numa roda gigante que vai subindo, paulatinamente, e depois retrocede; a nota do meio funcionando como um eixo fixo (como o centro aparafusado da roda gigante), em torno do qual as notas se expandem e circulam (as cade’rinhas em seu movimento circular e pro muito-alto e depois de volta pra Terra), tudo contribuindo pr’uma metáfora sonora poderosíssima; já a melodia da 2a seção se parece mais com “water babies”, sim, mas não no sentido da capa do disco (me arrisco a dizer), e sim como um bebê que é deixado cair na água da piscina e sobe gradualmente, pois os pulmões estão cheios de ar; qualquer um que fez natação neném lembra disso: a melodia desenha o mesmo, com um salto descendente anacrúsico, como um corpo diminuto que cai rápido e segundo a lei da gravidade, mas de uma pequena altura (pois é apenas uma terça menor), assim: como se fosse das mãos da mãe ou do pai por sobre a água, e que depois [aquele corpo, diminuto, de neném] vai subindo com a gentileza da água, passo a passo, bolha a bolha, nota a nota…; o piano, aliás, no registro médio-agudo, tem um timbre bem aquático.

O som da faixa como um todo também parece com a quase acidez do líquido amniótico (ou pelo menos foi assim que meu ouvido percebeu, não grila…). Chequei aqui na internet e o líquido amniótico realmente tem PH neutro, “quase ácido”, entre 7.0 e 7.5 (o ácido começa logo abaixo de 7). Miles desenhou, então, uma estética líquido amniótico, flutuante, acolhedora, leve, suspensa, o quase-vôo do corpo-em-água: aaaaahhhhhhh… .. .

Essa leve (ou quase) acidez também me lembra as primeiras vezes que eu prestei atenção, com foco!, ao som do Miles Davis, nessa e em outras faixas: uma afinação ácida pros meus ouvidos. “Ácida” no sentido do sistema digestivo mesmo: vai do ouvido pro corpo e pra barriga. Como um ouvido que ouve como tato, cor, sensação, forma e sonho. Então, me incomodava um pouco. Menos na sua fase “cool” e muito mais em seu bebop, onde as frases rápidas multiplicam os desvios de afinação no trompete (claro: pr’um ouvido mais amigo de instrumentos de afinação fixa: piano, violão… não é “a verdade”, mas apenas uma perspectiva).

Era um incômodo parecido com a rigidez dos timbres de DX-7, aquele teclado profissional que só os meninos ricos tinham na década de 80. Com exceção de que esses sons iam mais pros ossos da cabeça e algum sistema circulatório que minha falta de medicina não consegue detectar, mas não era pro sangue, certamente, porque quem vai pro sangue, mais pras artérias que pras veias, é o som do Jimi Hendrix mesmo – e em forma de adrenalina. O Hermeto, acho, usava muito esses timbres de DX-7 – e toda uma legião de gravações da década de 80. Então, eu gostava das formas desenhadas pela música, mas não da rigidez desses timbres. Sintetizados, né? “Artificiais” pr’um ouvido de cordas tácteis…

Quem me apresentou o Miles, acho, foi meu amigo de infância Luciano Lopes, tecladista. Bem antes d’eu ouvir essa faixa daquele CD rosa. Foi em fita cassete. Na, para alguns “gloriosa”, era pré-CD. Um belo dia, ele chega e diz: “Toma aqui: o ‘melhor’ do jazz”. Como quem divide um Biscoito Wafer da Piraquê ou um Biscoito São Luiz (esta segunda marca, creio, não existe mais, ou está muito, mas muito!, longe de ser a mesma coisa…).

Acho que o “melhor” do jazz fôra compilado entre os discos do pai do Luciano. Grande figura! Talvez um (ex-)comunista que colecionava jazz, não sei, a partir daí a memória embaça um pouco. Mas, essa fita tinha simplesmente: Wes Montgomery, Thelonious Monk, o “A Love Supreme” do John Coltrane e algum Miles. Naquela fita couberam não 60 minutos mas milênios de música. Bizarro…

 

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